Por
que nos cansamos durante a realização de um exercício físico? O que determina se
iremos diminuir o ritmo ou parar de vez durante uma corrida, por exemplo? Como
podemos retardar o efeito do cansaço e continuar forte por mais um pouco? Todas
essas são questões relacionadas à fadiga induzida pelo exercício físico. São
questões muito relevantes para quem deseja desenvolver e melhorar o seu
desempenho físico, seja ele no âmbito competitivo, recreativo, ou para promoção
da saúde e bem estar.
A
fadiga é um fenômeno fisiológico1
bastante complexo cujo estudo científico tem sido marcado historicamente por
uma série de controvérsias conceituais e diferentes abordagens investigativas. Em
indivíduos saudáveis a fadiga resulta da atividade muscular, sustentada ou
repetida, que tipicamente ocorre na prática de esportes, exercícios físicos, no
trabalho, ou mesmo em atividades da vida diária. Do ponto de vista da atividade
muscular esquelética, classicamente pode-se definir a fadiga como a “falha em
manter a força muscular e continuar a exercer trabalho em uma determinada
intensidade de exercício”. Ou ainda, “redução, induzida pelo exercício, na
capacidade de exercer força ou potência muscular, independente da manutenção da
tarefa”.
É postulado que, durante o
exercício, a fadiga é estabelecida por alterações no funcionamento de determinadas
estruturas corporais, sobretudo musculares; é a chamada “fadiga periférica”2. De acordo com essa
abordagem, o aumento da atividade muscular que ocorre durante o exercício
intenso diminui a disponibilidade de substratos energéticos (“combustível”) aos
músculos, bem como promove a produção de subprodutos metabólicos, substâncias
que devem ser eliminadas pelo organismo, pois, em excesso, podem prejudicar o
seu funcionamento. Desta forma, o termo “fadiga muscular” tem sido utilizado
historicamente no vocabulário científico, sobretudo entre os fisiologistas do
exercício, para se referir à falha em manter a força muscular durante o
exercício. Portanto, o modelo da fadiga periférica admite que a execução de um
exercício se encerre devido a uma falha catastrófica da homeostasia3 que, por sua vez, leva a
uma disfunção dos músculos esqueléticos devido ao insuficiente suprimento de
oxigênio e substratos energéticos pelo sistema cardiovascular. Ou seja, o
esgotamento do ”combustível”, e a consequente diminuição da capacidade de funcionamento
do sistema cardiovascular, bem como dos músculos esqueléticos, ocorreria de
forma linear ao longo de uma sessão de exercício, determinando a queda no
desempenho ou mesmo a interrupção do exercício. Esta concepção teórica da
fadiga suporta o chamado modelo “Cardiovascular-Anaeróbio-Catastrófico”
proposto pelo fisiologista inglês A. V. Hill no início do século passado e que
impera entre os fisiologistas do exercício praticamente até aos dias atuais. Este
modelo vem servindo de base teórica para o estabelecimento da metodologia do
treinamento esportivo nos últimos 60 a 80 anos. No entanto, embora as
adaptações cardiovasculares e musculares decorrentes do treinamento físico
sejam necessárias para o ganho de desempenho atlético, o modelo
“Cardiovascular-Anaeróbio-Catastrófico” apresenta limitações para explicar determinados
fenômenos que ocorrem durante uma sessão de treinamento ou uma prova de competição.
Por exemplo, em uma prova de corrida, os indivíduos tipicamente apresentam um
aumento na velocidade de corrida quando se aproximam do final, é o chamado “end spurt” ou “sprint final”. Tal fenômeno não poderia acontecer caso os
substratos energéticos estivessem diminuindo ou se esgotando e fossem os únicos
responsáveis para a fadiga... Outra observação é que indivíduos iniciam e
mantêm uma corrida em diferentes intensidades, ou ritmo (pacing), de acordo com a duração ou extensão da corrida ou prova; o
que revela um componente antecipatório do desempenho naquele específico
exercício, ou seja, uma “previsão” de como devemos nos comportar ao longo de
uma prova de 5 ou 10 km. Tal componente antecipatório não poderia ser
estabelecido apenas por mecanismos fisiológicos meramente periféricos... Além
disso, há falta de evidências científicas para a ocorrência de uma falha
metabólica catastrófica dos músculos esqueléticos no final do exercício. Em vez
disso, o exercício parece sempre terminar quando ainda há uma reserva dos
recursos metabólicos e fisiológicos do organismo.
Portanto, outros mecanismos
fisiológicos, além dos cardiovasculares e musculares periféricos, devem
participar do complexo processo de estabelecimento da fadiga e consequente
queda no desempenho atlético.
Com
o avanço da investigação científica, outras alterações fisiológicas, foram
sendo demonstradas, principalmente no sistema nervoso central. Neste contexto, surge
o conceito de “fadiga central”4
que é caracterizada pela falha na ativação neural5 voluntária das fibras musculares esqueléticas
diminuindo a magnitude do seu recrutamento, isto é, o sistema nervoso central
não consegue ativar os músculos de forma ótima. Com menos fibras recrutadas em
decorrência da fadiga central, ocorre a queda no desempenho físico.
A inclusão do sistema nervoso
central nos estudos sobre a fadiga abre questões que vão além da função neural
estritamente motora, ou seja, que determina o padrão de recrutamento de fibras
musculares esqueléticas. Atividades neurais não motoras, subjacentes a
fenômenos tais como percepção sensorial, regulação das emoções, motivação e
tomada de decisão, também são de suma importância para os determinantes da
fadiga e da queda no desempenho durante o exercício físico. Por exemplo, um mesmo
indivíduo, com o mesmo nível de condicionamento físico, pode apresentar
desempenhos atléticos diferentes diante de circunstâncias motivacionais
diferentes; a presença de um adversário desafiador durante uma competição pode
ser muito motivante e determinar um desempenho melhor do que seria durante uma
sessão de treinamento rotineira.
Neste
contexto, o sistema nervoso central, sobretudo o cérebro, teria uma função
crucial na determinação da fadiga, uma vez que funcionaria como um órgão
regulador do comportamento motor durante o exercício físico garantindo que este
seja realizado sempre com reservas e que seja encerrado antes que ocorra uma
falência catastrófica da homeostasia. Sobretudo em indivíduos pouco treinados,
o exercício parece ser encerrado quando há uma reserva energética ainda de
considerável magnitude. Trata-se de um mecanismo fisiológico de proteção que
mantém as condições homeostáticas essenciais para a manutenção da vida. O
cérebro, como regulador mestre de todo o organismo, gera a sensação de fadiga
para impedir que os recursos energéticos sejam completamente exauridos,
garantindo desta forma seu próprio suprimento energético. Com esta abordagem,
um modelo mais complexo e integrativo foi recentemente proposto para explicar o
fenômeno da fadiga e sua relação com o desempenho físico: trata-se do chamado
“Modelo do Governador Central”. Tal modelo preconiza, grosso modo, que o
cérebro utiliza os sintomas da fadiga, ou seja, as sensações desagradáveis
associadas às alterações fisiológicas que ocorrem em todo o organismo durante a
realização do exercício físico, para efetuar um complexo processamento
neural/mental de tais informações e elaborar programas motores com um
determinado padrão de recrutamento de fibras musculares que seja adequado e
continuamente ajustado à capacidade fisiológica do organismo. É importante
ressaltar que além do feedback
sensorial interoceptivo e proprioceptico6
referente às sensações de fadiga, outros fatores tais como estado emocional,
nível de motivação, experiência prévia com a atividade a ser realizada e
percepção do ambiente externo ao organismo também contribuem para o processo de
computação neural que determina o comportamento motor.
Adicionalmente,
é proposto um componente antecipatório, de feedforward
7, que, utilizando a
experiência prévia do indivíduo e a expectativa de duração do exercício, define
um padrão de ativação motora inicial e gera um “modelo” neural/mental preditivo
da sensação de fadiga e percepção de esforço para aquela determinada atividade
física a ser realizada. Ao longo da realização do exercício, as sensações
subjetivas que emergem são continuamente sobrepostas e comparadas ao “modelo”
inicial permitindo os ajustes dos programas motores quando há discrepância
entre modelo e percepção.
Em
suma, a fadiga durante o exercício seria caracterizada pela sensação subjetiva
das alterações fisiológicas/homeostáticas que ocorrem no corpo induzidas pela
atividade física. Tais alterações do estado do organismo são representadas no
cérebro e se constituem em uma emoção – a emoção da fadiga – que teria a função
de regular o comportamento motor durante a execução do exercício a fim de proteger
a homeostasia do organismo.
Assim
sendo, enquanto os mecanismos “clássicos” que determinam a fadiga durante o
exercício têm sido relacionados com os sistemas cardiovascular, respiratório,
metabólico e neuromuscular, produzindo um modelo “brainless” (sem a participação do cérebro) do desempenho físico
humano, estudos contemporâneos têm desafiado este paradigma da fisiologia do
exercício enfatizando o crucial papel exercido pelo cérebro na regulação do
desempenho físico/atlético. Portanto, para melhor compreensão do complexo
fenômeno da fadiga, os estudos sobre o tema devem seguir uma abordagem que faça
a integração dos sistemas periféricos (cardiovascular, respiratório, metabólico
e neuromuscular) com seu controle exercido pelo sistema nervoso central, visto
que o modelo “brainless” não é capaz
de explicar todos os fenômenos relativos à fadiga induzida pelo exercício
físico.
Neste
cenário, uma metodologia de treinamento físico mais eficiente deveria incluir
estratégias e técnicas para se alcançar um melhor monitoramento e administração
das sensações e percepções desconfortáveis relativas à fadiga que surgem no
cérebro/mente. Desta forma, seria possível acessar as reservas energéticas um
pouco mais, se aproximar mais do limite, mas ainda em níveis seguros. Para
tanto, os modernos fisiologistas do exercício e preparadores físicos deverão
acrescentar em sua formação um sólido conhecimento sobre neurociências.
Notas:
1Fisiológico
– Referente ao funcionamento do organismo vivo.
2Fadiga
Periférica – Que ocorre em estruturas localizadas em todo o organismo com
exceção no Sistema Nervoso Central.
3Homeostasia
– Condições internas do organismo que precisam permanecer estáveis para a
manutenção da vida.
4Fadiga
Central – Que ocorre em estruturas localizadas no Sistema Nervoso Central..
5Neural
– Referente ao Sistema Nervoso.
6Feedback
sensorial interoceptivo e proprioceptico – Refere-se a impulsos nervosos que
chegam ao cérebro continuamente trazendo informações sensoriais sobre o estado
interno do corpo (interoceptivo) e sobre a tensão muscular e a posição das
partes dos corpo (propriocepção).
7Feedforward
– Atividade cerebral que antecede a ativação neural dos músculos para a
execução dos movimentos. Também ocorre continuamente.
Para
saber mais:
NOAKES, T. D. Fatigue is a Brain-Derived Emotion that
Regulates the Exercise Behavior to Ensure the Protection of Whole Body
Homeostasis. Front Physiol. 3(82): 1-13, 2012.
NOAKES, T. D. Time to move beyond a brainless exercise
physiology: the evidence for complex regulation of human exercise performance.
Appl Physiol Nutr Metab. 36(1): 23-35, 2011.
TUCKER, R. The anticipatory regulation of performance:
the physiological basis for pacing strategies and the development of a
perception-based model for exercise performance. Br J Sports Med. 43(6):
392-400, 2009.
Monstro!!!!!
ResponderExcluirExcelente texto!!!!